O berço da cidade
As cidades têm berço: aquele lugar primeiro nos arredores do qual a vida urbana teve início. São campos sagrados, uma espécie de solo bendito que conta a história desde o seu começo e que, muitas vezes, anos depois são arrasados. Manaus tem o seu solo primeiro e sagrado que desde alguns anos também está arrasado. Deitada à beira esquerda do rio Negro e formada a princípio por índios e poucos estrangeiros, anos e anos depois foi dilapidando seu entorno original até perdê-lo quase completamente neste começo do século 21. Os sítios arqueológicos que poderiam comprovar as nossas mais ricas e variadas origens estão submersos, desde o aterramento da área do porto fluvial até a região dos Remédios, e pouco mais acima. E como se não bastasse o fato de que somente poucos de nós estamos interessados nestas particularidades, os sítios urbanos mais expressivos da fase histórica européia, também estão desaparecendo. Qual leitor poderia dizer, rapidamente, sem pestanejar, o local exato da praça 9 de Novembro, e sua representação para a vida da cidade? Pois bem, o tal logradouro não só existiu durante muitos anos como foi palco de solenidades cívicas por demais importantes para a construção da cidadania de que tanto reclamamos nos dias correntes. É aquela a que o sempre lembrado e querido Genesino Braga chamava de “estaca-zero” de Manaus, que foi perdendo as árvores e as palmeiras imperiais, deixando de ser referência para os que circulavam em direção ao porto e ao mercadão, até perder-se em um emaranhado de coisas indescritíveis e inaceitáveis para uma cidade-estado como a nossa. Por ela passaram os índios manaós e barés que ali enterraram seus mortos e deixaram para seus apetrechos de vida e de trabalho. Por ela passaram os brancos que por aqui chegaram, desde o capitão português Angélico de Barros que foi o primeiro comandante do forte de São José da Barra do Rio Negro para o qual a praça servia de recepção. E se ainda resistiu por muitos anos, deve ter sido em nome da rezas e bênçãos dos pajés que a defendiam para preservar os nossos antepassados, e depois pela benção solene do bispo e frei Caetano Brandão quando por aqui andou em 1788. Diante dela, em “palácio” de palha residiu Lobo d’Almada, o primeiro transformador da capital, a ver a pequena capela de Nossa Senhora da Conceição que findou incendiada em 1850. Ficava bem nos fundos do grupo escolar marechal Hermes, por cujas salas andei a estudar os últimos anos do curso primário, quando a praça era ponto de encontro das nossas esperanças de futuro. E foi em seu terreiro sombreado que em 1823, sobre os santos evangelhos, a junta de nosso governo jurou obediência ao Senhor dom D Pedro que proclamara a independência do Brasil, na vã tentativa de tornar-se livre e independente da província do Pará. Aquele dia 9 de novembro foi de festas, girândolas, foguetório, missa e marcha pelas ruas, festejos depois sufocados pela opressão política que nos retirou o governo próprio e a sonhada autonomia. Cento e cinquenta anos passados, ainda com o sopro dos ventos que vinham da beira do cais que flutuava e com a harmoniosa orquestra das folhas de palmeiras imperiais, relembramos aquele dia glorioso ressuscitando para as gerações de então a importância daquele lugar pitoresco. Depois, seguiu-se a degradação mais vil até derrubarem as palmeiras, desfigurarem a praça de vez e fazê-la sumir do mapa, como se nunca tivesse existido. Quem por ali passa nos dias de agora não pisa com respeito aquele solo, nem reverencia o passado como deveria fazer, até porque a praça sumiu, o largo desapareceu, o porto não flutua mais, os ares são de completo abandono e desordem. O fato é que perdemos a referência do Largo da Trincheira, depois praça 9 de Novembro, de tantas e tão boas lembranças para a nossa história, desde os tempos dos primeiros donos da terra que ali costumavam exercer suas práticas.
Robério Braga é secretário de cultura do Estado do Amazonas
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