segunda-feira, 24 de julho de 2017

Um mundo sem ponte e sem pinguela

Aylê-Salassié F. Quintão*
    
             Julgamentos, articulações, traições e, finalmente,  o recesso. São alguns dos temas com os quais os partidos cozinham a  imprensa , iludem a população e os políticos divertem-se entre si. Um pic-nic.  É até possível que o País ande quando param,  observa o jornalista Carlos Brickmman.  Sem eles no cenário, Brasília e o Brasil  são diferentes. Não chega a ser um mundo novo, embrionário, mas os cidadãos retornam, pelo menos, ao protagonismo cotidiano, sem a necessidade de passar por “Pinguela” , “Ponte para o Futuro”,  nem acompanhar a novela e enunciados de figuras errantes.
 
             Para a população o recesso não funciona como um “tempo morto” (Cavalcanti), visto assim por um grupo de altos funcionários e políticos que  desfrutam confortavelmente de um mês sem trabalho,  interpretando  a folga como um “direito” do cargo e “mérito” profissional, conquistados em  menos de cinco meses de atividades.  São privilégios classistas como esses, institucionalizados, que, no Brasil, carimbam alguns como diferentes dos outros. Assim é que enquanto os cidadãos se matam para contornar a crise que inviabiliza a economia e espalha o desemprego, esse grupo está  em “gozo de “férias”.
 
              Das contradições  dessa velha e agonizante ordem, um novo mundo surge. Inspira-se nas revoluções digital , ambiental, nos direitos humanos e na luta pela  justiça social.   É  disso que falava o filósofo  italiano Antonio Gramsci, nas Cartas de Cárcere,  ao reclamar que “o mundo novo tarda a chegar”, mas que quando chegasse poderia assustar , ao  interromper repentinamente práticas  transgressoras naturalizadas.  Na prisão dos fascistas, Gramsci ficava angustiado com a dificuldade das pessoas para entender o esgotamento dos modelos que sustentavam   os regimes de privilégios e opressão, e as rupturas profundas que estavam para acontecer.
 
              Pois, para esse novo mundo que aflora lenta e sistematicamente   não tem modelo alternativo, ponte, pinguela e nele não há recesso.  É um mundo desmitologizado e democraticamente polivalente.  Sua aceleração se dá  em função das contradições que emergem assistemáticas  do submundo da política e da economia, e  ridicularizadas viralmente no campo da cultura pelas mulheres,  pelas redes sociais, pelos ambientalistas, pelas minoriais. Provocam um afrouxamento inclusive no caráter identitário  pátrio do cidadão. Conduzem um conjunto de grandes rupturas nos usos, costumes, ações ritualizadas pelos segmentos hegemônicos  nacionais.
 
              No Brasil, a ponte que o separa do futuro próximo parece ser simbolicamente  a Lava Jato que, em            três anos de funcionamento, centrada unicamente na corrupção na  Petrobrás,  fez  207 prisões, condenou 141 pessoas, recebeu 158 acordos de colaboração premiada (pessoa física) e 10 de “leniência” (empresas), do que resultaram 64 acusações criminais contra 281 líderes políticos e empreendedores. Cerca de 50 pessoas foram acusadas de improbidade administrativa. Seis partidos de relações espúrias, sendo que o caixa de um deles registrava movimentações de  R$ 14,5 bilhões . Constatou o desvio de R$ 42,8 bilhões de recursos públicos. Recuperaram-se  R$ 10 bilhões de propinas, dos quais R$ 756,9 bilhões em dinheiro repatriados, conforme mostra o Relatório Dallagnol (2017). A Operação revelou a estrutura criminosa que vem  gerenciando a coisa pública no País há quase 20 anos.
             
              Enganou-se, portanto,  quem  tratou, como anômicas,  as explosões das ruas  em 2013 no Brasil. As frentes ativas da cidadania estão convictas da ideia de que a produção de bens constante e crescente, para alavancar o crescimento econômico,  já não deve ser o primeiro propósito das políticas públicas. Seus benefícios não chegam à população. Conectados aos milhões, os ativistas  distanciam-se das simplificações ideológicas, mantendo sob desconfiança  governos e políticos que se  amparam em soluções envelhecidas.
 
             Os protagonistas  desse mundo novo espelham-se em filosofias , também em gestação, contra os tais “monstros” , de que fala Gramsci – todo esse mundo reacionário -   e, por isso, apóiam lutas de libertação,  estimulando a ciência e a tecnologia a se aproximarem da sociedade , defendendo ainda direitos de mobilidade das pessoas. Colocam em check a cultura do nacionalismo: “ATerra é um só mundo, e nós seus cidadãos” (Bahaís).  Esperam derrubar posições e privilégios instituídos pelo modelo neoliberal e, com isso, o medo instrumentalizado por ele.
 
             Depois da “Pinguela”, o caminho será áspero. Cada vez mais pressionado, o capital terá de estar aberto a novos pactos com as comunidades para incorporar responsabilidades sociais e inovações tecnológicas em suas práticas. No Brasil, as mudanças são arrastadas. Mais da metade das empresas não fez diagnóstico algum para introdução do eSocial , obrigações que vão vigorar a partir de  2018 ( dec. nº 8373/2014).  A maioria delas não definiu também o quadro das novas opções tecnológicas. Está tudo meio imobilizado ou sendo paralisado por essa  crise artificiosa gerada no espaço da Política, com base em soluções  de aparências milagrosas. O mundo que tarda não deixará de chegar  mas, provavelmente, será necessário desinterditar o percurso, representado pela velha ordem e pela resistência  messiânica, essa cortina de retórica que turva o cérebro dos brasileiros .
 
Jornalista, professor, doutor em História Cultural

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