terça-feira, 14 de abril de 2015

A TERCEIRIZAÇÃO NO BRASIL: MUDANÇAS À VISTA... PARA PIOR?

Por Ricardo Santoro Nogueira* 

 O Projeto de Lei nº 4.330/2004 foi aprovado na Câmara, após onze anos de tramitação. A matéria visa regulamentar a terceirização, fenômeno já consolidado, oriundo da movimentação do livre mercado competitivo e globalizado, ao longo das décadas, sempre visando otimizar a produção e reduzir os custos para as empresas. Até o momento em que a referida lei entrar em vigor, a terceirização continuará tendo sua base na Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho. O enunciado sumular aduz ser legal a contratação de trabalhadores por empresa tomadora para a realização de atividade-meio, desde que inexista pessoalidade e subordinação direta, respondendo o tomador dos serviços subsidiariamente pelo inadimplemento das obrigações trabalhistas – uma forma de forçar a empresa a ter o mínimo de zelo e evitar que contrate empresa terceirizante inidônea. Na seara da Administração Pública, a relação triangular da terceirização é mais complexa – porém lícita – por imiscuir-se naturalmente nos princípios do direito administrativo. Não cabe cá discutir até que ponto agiu corretamente o TST ao “legislar” sobre um tema então não regulamentado no Brasil. Evidente que o tribunal superior tinha a melhor das intenções ao assim agir. Tanto que, quando o STF declarou válida e constitucional a norma que impede a transferência à Administração Pública da responsabilidade pelo pagamento de encargos trabalhistas em caso de inadimplência do contratado responsável (art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93), o TST alterou substancialmente sua Súmula nº 331, em maio de 2011, para que a responsabilidade subsidiária da Administração Pública não decorresse do mero inadimplemento, mas sim de conduta culposa do ente estatal, uma forma de continuar protegendo os trabalhadores, princípio-mor do Direito do Trabalho. Neste ponto, o art. 10 do projeto de lei diz que “a empresa contratante é subsidiariamente responsável pelas obrigações trabalhistas referentes ao período em que ocorrer a prestação de serviços, ficando-lhe ressalvada ação regressiva contra a devedora”. Com isso, denota-se clara intenção do legislador de proteger o trabalhador, jogando à empresa contratante o ônus de correr atrás do prejuízo que teve. A inserção da tomadora do serviço terceirizado no polo passivo das ações trabalhistas (isto é, como ré) se justifica quando a empresa empregadora contratada passa por dificuldades financeiras, processo de recuperação judicial ou qualquer outra situação onde subsista o risco de calote. Daí se infere a responsabilidade indireta da tomadora do serviço por contratar empresa financeiramente problemática ou inidônea. Isso, claro, na esfera privada. No âmbito público, prevalece o regramento do referido art. 71 da Lei nº 8.666/93. O fenômeno da terceirização tende a criar o que se pretende chamar de “metavínculo” entre patrões e empregados, sendo este a grande divergência e crítica feita pelos sindicatos. Do ponto de vista econômico, a especialização de mão-de-obra e comércio entre agentes especializados aumenta a riqueza geral dos envolvidos e a produção social, pois cada agente especializado em um serviço produz muito mais do que se tivesse que produzir várias coisas diferentes ao mesmo tempo. Sob tal ótica, todos os envolvidos saem ganhando, inclusive os terceirizados, pois esses empregados também vão consumir produtos e serviços de empresas que terceirizaram suas atividades-meio e baratearam seus produtos – se barateia, aqueles pertencentes às camadas sociais de menor renda são os mais beneficiados. Ademais, sabe-se, com menor custo de mão-de-obra, a geração de mais empregos e o aumento do salário líquido do trabalhador tornam-se mais viáveis e suscetíveis a se realizarem. Aliás, com essa geração de empregos e o fomento a diversos setores da economia, as arrecadações aumentarão, fulminando o falacioso argumento de que a terceirização causará um rombo de R$ 20 bilhões no Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Segundo dados do Fiesp, a regulamentação do sistema de terceirização permitirá abrir 3 milhões de empregos. Outro ponto – e certamente o mais polêmico – abrange as atividades-fim como passíveis de serem terceirizadas, o que até então é vedada, pela força do enunciado sumular do TST. Essa extensão às atividades-fim resolverá um grande problema que muitas empresas enfrentam: a impossibilidade de distinguir claramente as atividades acessórias e as atividades centrais dentro da instituição. Estima-se que, com as regras mais flexíveis, as empresas possam aumentar a contratação. E isso, evidentemente, se volta a favor do trabalhador, e não contra. Aliam-se a isso as numerosas exigências determinadas na nova lei e o dever de fiscalização imposto às contratantes e não se vislumbrará a razão para tamanho bulício por parte daqueles contrários à terceirização regulamentada. O texto ainda prevê que a pessoa jurídica cujos sócios ou titulares tenham prestado serviços à contratante como empregados pelos últimos 24 meses não poderão ser contratados, assim como não pode figurar como contratada a pessoa jurídica cujos titulares ou sócios tenham relação de pessoalidade, subordinação e habitualidade, requisitos que, junto com a onerosidade, formam o vínculo empregatício, segundo os arts. 2º e 3º da CLT. Na prática, um profissional liberal que preste serviços a uma empresa pode ter o vínculo trabalhista com ela configurado, se comprovar tais requisitos. Nova redação dada pelo relator, o deputado Arthur Oliveira Maia (SD-BA), fulmina a opróbria “pejotização”, a qual consiste em obrigar o trabalhador a constituir uma pessoa jurídica para executar trabalhos próprios de pessoa física, com o pusilânime intuito de mascarar a real relação empregatícia existente. Faz-se valer o princípio da primazia da realidade, que deve sempre nortear as relações trabalhistas e, consequentemente, as decisões judiciais. Do outro lado, não passa de mero sofisma o argumento das entidades sindicais de que a terceirização prejudicará a todos os brasileiros, pois irá restringir os direitos trabalhistas conquistados, em benefício de empresários, sempre vistos como os vilões da história, que terão baixo custo com a demanda da mão-de-obra. Em verdade, os sindicatos temem perderem a representatividade em diversas categorias profissionais, pois os direitos trabalhistas em nada serão afetados. Ao revés, a postulação judicial pelo empregado até lhe é tornada mais benéfica, haja vista que, com a responsabilidade subsidiária do tomador do serviço, o trabalhador tem, em regra, ampliada a chance de receber seus direitos trabalhistas que porventura não lhe tenha sido pagos – não há “via-crúcis processual”, como aferiu o deputado Vicentinho (PT-SP), pois a execução judicial é menos complexa do que se imagina. Aliás, se certas figuras do peleguismo nacional e do esquerdismo, em geral, são contra determinado projeto ou ato político, já é um prenúncio de que o projeto ou ato vergastado seja benéfico à nação. A contrariedade dos entes sindicais e adeptos à ideologia mais próxima de Marx ignora que o excesso de direitos se volta contra aqueles que o detêm (exemplo: a PEC das Domésticas, que acabou por ocasionar uma redução no número de contratações de empregadas domésticas), ao passo que nem tudo que aparentemente possa reduzi-los signifique uma precarização – caso em comento. Ora, pessoas com vultosa expertise no assunto firmam embaixo que a regulamentação da terceirização, além de adequar a relação aos “tempos modernos” pós-Chaplin, trará benefícios aos próprios empregadores. Assim, a crítica de certos setores da esquerda brasileira, por si só, não se sustenta. Não há no que se falar em precarização; muito pelo contrário, é a falta de regulamentação que dá brechas para o mau empregador burlar a lei e vilipendiar direitos trabalhistas, apesar de todo o aparato dirigista, vetusto e intervencionista da CLT. Estarrecedor é o Partido dos Trabalhadores criticar a regulamentação da terceirização e ter sido motriz da vinda de médicos estrangeiros ao Brasil, “terceirizando” politicamente uma contratação empregatícia além das fronteiras cosmopolitas. E, pior!, se absteve de dar qualquer vínculo laboral entre a União e esses médicos, como absurdamente chancelou a Justiça brasileira ao dizer que, pela lei que criou o abjeto Programa Mais Médicos (Lei nº 12.871/13), as atividades desses médicos seriam próprias de um curso de especialização e afastariam qualquer relação jurídica de trabalho. Eventual ação judicial nesse sentido deve transcorrer na morosa e superabarrotada Justiça Federal, não na “pouco menos morosa” Justiça do Trabalho. Há quem sustente e receie que a nova lei poderá restringir concursos públicos, pois alguns órgãos optariam por empregados terceirizados em detrimento daqueles aprovados em concurso, sejam eles celetistas ou estatutários. Tal atitude configuraria desrespeito à Constituição, em seu art. 37; logo, diante da notoriedade desta violação, o receio não merece vigorar. O que poderia ocorrer é restringir os concursos através da terceirização de servidores públicos entre órgãos da mesma esfera (municipal, estadual, distrital e federal) e do mesmo Poder (Legislativo, Executivo e Judiciário). Essa “terceirização” de servidores, na prática, já ocorre há longo tempo, com funcionários sendo cedidos a um órgão com déficit de pessoal ou por qualquer outro motivo. O reaproveitamento e o realocamento de servidores públicos, se bem intencionados e com base legal e adequação da formação à tarefa, são uma medida justa, eficaz e louvável, levando servidores de órgãos cujo labor seja um convite ao ócio a órgãos com indubitável carência de funcionários. Ainda que isso acarrete numa redução do número de concursos públicos, deve-se lembrar que: i) serviço público deveria ser exceção e iniciativa privada, regra; ii) o interesse público deve sempre prevalecer sobre o interesse particular – e questões de orçamento, gasto público com servidores e enxugamento da máquina é, sim, parte de qualquer ajuste fiscal e, portanto, questão de interesse público; iii) um freio na “concursologia” que se instaurou no Brasil nas últimas duas décadas seria um grande fomento à iniciativa privada, motor da economia e do desenvolvimento. O que parece ser temerário com a terceirização regulamentada – e contra isso sim cumpre lutar – é o chamado desvio de função. É quando o empregado realiza com notória frequência atividade diversa para a qual fora contratado, rompendo assim com a intentio registrada no contrato de trabalho, sem receber a devida contraprestação por isso, incorrendo o empregador-pagador em locupletamento ilícito por ter disponível uma mão-de-obra sem remunerá-la corretamente. Aliás, em diversos órgãos públicos, sobretudo do Poder Federal, é abissal o número de terceirizados em desvio de função, realizando atividades-fim e recebendo, a título salarial, quantia ínfima, enquanto um servidor público recebe exorbitantemente mais e desempenha as mesmas funções, quando as desempenha. Há casos em que o terceirizado trabalha no mesmo órgão público por décadas, porém, analisando sua carteira de trabalho, denota-se que passara, durante esse largo lapso temporal, por diversas empresas. Ou seja: nos novos contratos, as próprias empresas vencedoras se prestam a assumir os empregados das antigas empresas por imposição do órgão contratante. Em casos tais, a seguinte pergunta paira: afinal, com quem é, de fato, o vínculo empregatício deste terceirizado? Com as empresas que lhe assinam a CTPS? Ou com o órgão público para o qual trabalha com décadas ininterruptamente? Nesta estapafúrdia situação, verifica-se que tal terceirizado faria jus aos mesmos direitos de um servidor, sobretudo na questão salarial. Se ingressado no órgão cinco anos antes do advento da Constituição Federal de 1988, em vista do notório princípio tempus regit actum (“o tempo rege o ato”), poderia este terceirizado adquirir, até mesmo, a estabilidade de um servidor público? A questão parece ter sido pouco dirimida pelo Judiciário, mas, de acordo com o princípio da isonomia no ambiente laboral, não seria nada injusto que o terceirizado do exemplo dado faça jus à estabilidade, diante do absurdo cometido pelo órgão estatal, à margem da lei e da boa-fé administrativa. Afinal, em muitos casos estariam, na prática, configurados aqueles requisitos do vínculo (pessoalidade, subordinação, habitualidade e onerosidade). Em suma, a regulamentação da terceirização, embora não seja perfeita, é benéfica e vantajosa, uma “liberalização” da legislação trabalhista talvez inédita no Brasil. A aprovação do projeto não deixará de ser um marco paradigmático para o País. Que assim seja! *Advogado, especialista em Direito do Trabalho e em Direito Público, é criador do blog Sociedade Aberta

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