Por Hildegard Angel
Voando para o Rio de Janeiro, com a cabeça
fervilhando de emoções, preciso me beliscar para acreditar que tudo que vivi
foi realidade.
A noite de abertura da Ocupação Zuzu no Itaú
Cultural na Avenida Paulista foi uma apoteose. Amanhã, com tempo e a
cabeça mais descansada, as emoções controladas, vou poder descrever para vocês
o que foi receber o jorrar de tanto carinho. A quantidade de amigos que vieram
do Rio para São Paulo expressamente para estar junto a mim neste momento tão
expressivo da minha vida naquela noite em que eu colhia os frutos de tanto
esforço após anos de obstinada construção de um projeto de vida pela
preservação da memória e da obra de Zuzu Angel. Hoje, deixo aqui, como amostra
daquele momento vivido, o discurso que pronunciei após a fala da ministra da
Cultura, Marta Suplicy, sucedendo ao breve, porém contundente, speech de
abertura de Milú Villela, presidente do Itaú Cultural, na solenidade muito bem
conduzida pelo diretor da instituição, Eduardo Saron:
“São muitas as Lendas que envolvem um mito.
No caso de Zuzu Angel, a mais incômoda das “lendas urbanas”, eu vou
chamar assim, é a de que ela morreu num “acidente sem causas esclarecidas”.
Esperamos 22 anos até o Governo Brasileiro, à
época do presidente Fernando Henrique, através da Comissão dos Desaparecidos
Políticos criada pelo Ministro José Gregori, realizar uma investigação,
provando que o suposto “acidente” que vitimou minha mãe foi, de fato, uma
emboscada para assassiná-la, realizada por agentes do regime militar.
Hoje, 16 anos após aquele esclarecimento, ainda há
quem se refira ao episódio como um “acidente”.
Ou seja, somados, já são 38 anos de
nebulosa negação de uma realidade. Além de lhe roubarem a vida, ainda tentam
lhe usurpar o mérito da morte heróica.
Essas nuvens equivocadas enfim começam a se
dissipar, graças a esta Ocupação Zuzu, parceria do Instituto Itaú Cultural com
o Instituto Zuzu Angel, que ocupa não apenas quatro andares
deste prédio nobre, como também todos os canais da mídia do
país, esclarecendo devidamente os fatos.
Com esta exposição, o Itaú Cultural é a
primeira grande instituição de promoção da cultura do Brasil que abraça a Moda
como manifestação de arte, avalizando-a, afinado com a condução dada pela
minista Marta Suplicy à política cultural do país.
Para dar esse passo, o Itaú Cultural escolheu a
coleção de Zuzu Angel, a pioneira do conceito da moda com legitimidade
brasileira, sem se submeter aos ditames colonizantes dos padrões europeus, que
limitavam nossos designers a meros copistas seguidores de tendências
importadas, submissos aos critérios instituídos por Paris do chique e do não
chique.
Mesma insubordinação Zuzu demonstrou contra a
ditadura instalada no Brasil, na busca de seu filho, Stuart, peregrinando de
quartel em quartel, e, depois, na denúncia de seu assassinato, reivindicando
seu corpo para poder enterrá-lo, nem que fosse “com as mãos”.
Minúsculas mãos, delicadas, miraculosamente sem calos,
apesar de tantas vezes ter precisado empunhar a pesada tesoura de ferro, nas
eventuais ausências da contra-mestra, na mesa de corte em seu ateliê de
costura, até rompendo madrugadas para dar vazão à sua criatividade.
Pois Zuzu não era apenas criação e glamour. Era a moda
por inteiro. Sabia costurar, cortar, traçar o molde, rascunhar os modelos, os
bordados, as estampas que criava, e conseguiu ser a primeira estilista no país
a tê-las produzidas por uma indústria têxtil, a Dona Isabel, com seu nome
na ourela, que é aquela barra de acabamento da peça da fazenda,
onde figuram os créditos da indústria e do tipo de tecido.
Lá estava escrito: Dona Isabel, Polybel – o tecido – e Zuzu
Angél, que as pessoas liam desse jeito mesmo, rimando. Algumas vezes vinha
também o nome da coleção de Zuzu à qual aquela estampa se referia:
International Dateline Collection I, II, III, IV…. Tudo valorizando o produto e
a indústria brasileira.
Zuzu sabia fazer seu marketing, envolver, seduzir, era
uma estrategista comercial, bem como se revelou, após, uma estrategista
política.
Assim, levou, em 1970, sua moda à passarela da mais
importante loja de departamentos da América, a Bergdorf Goodman, ocupando todas
as suas vitrines em Nova York de uma só vez!
Sua moda encantou a imprensa americana, as estrelas de
cinema, grandes lojas.
Assim, estrategista, percorreu em 1971 os
corredores do Senado americano, somando aliados e em busca de respostas sobre o
paradeiro do corpo de seu filho.
Militante, driblou vigilâncias e levou sua
denúncia ao secretário de Estado Henry Kissinger em visita ao Brasil em 1976.
Legítima, em sua causa de ser mãe às últimas
consequências, instrumentalizou sua arte e fez dela bandeira de denúncia, de
seu desespero e de sua dor.
Corajosa, conduzia solitária seu Karman
Ghia rumo à morte certa, na madrugada de 14 de abril de 1976 um mês depois da
entrega do dossiê a Kissinger. Não tinha medo. Cumpria a parte que lhe cabia
naquela tragédia brasileira.
Cumprimento Milú Villela, ela também uma
pioneira – e Milú rima com Zuzu – por esta sua maneira ampla de enxergar a
cultura no país, que vai além dos simples eventos, amplia-se ao social, à
formação profissional.
Parabenizo-a pelas múltiplas realizações
que tem empreendido à frente desta casa de modo comprometido e generoso,
tornando o Brasil um país melhor e mais importante.
Comprometida a Milú também com um triste
momento brasileiro, quando escondeu e protegeu o pai do deputado Márcio Moreira
Alves, o Marcito, cujo discurso audacioso levou ao fechamento do Congresso
nacional. As forças de repressão queriam prender o pai para encontrar o filho.
Agradeço a essa equipe competente,
liderada por Eduardo Saron, que trabalhou em parceria com o Instituto Zuzu
Angel. Vou nominar aqui: Claudiney Ferreira, Valéria Toloi, Valdy Lopes Junior,
o time de curadores comigo.
Foram mais de seis meses de trabalho ininterrupto nós
todos juntos, no Instituto Zuzu Angel e dentro de minha
própria casa, no Rio de Janeiro.
Agradeço até a Rainha da Dinamarca! E por quê? Porque gentilmente
abriu mão por alguns dias da Curadora das suas Coleções Reais desde 1980, a master of sciences
Katia Johansen, para que ela pudesse vir a São Paulo trabalhar na moda desta
Ocupação, importada expressamente para fazer desta ação algo importante nacional
e internacionalmente.
Katia também presidiu até o ano passado o Costume
Committee do International Council of Museums, e por oito anos.
Agradeço a você, Katia, por ter aceito este
convite. Ter você conosco é grande honra!
E Katia Johansen é parceira na construção de
um novo pioneirismo de Zuzu Angel.
A Casa Zuzu Angel de Memória da Moda do Brasil –
Acervo, Conservação e Restauração de Têxteis, projeto em que o Instituto Zuzu Angel dá
continuidade à sua parceria com o Instituto Itaú Cultural.
Consistirá em nosso Museu da Moda, projeto a ser iniciado
ainda este ano com o conceito inédito de Museu Escola.
Um Museu Escola que contemplará o Passado,
através da Memória da Moda, focando sua coleção no Mundo Contemporâneo.
O Presente, com a transmissão do conhecimento, nos cursos
de formação em museologia da moda, exposição, conservação, restauração de
têxteis, saberes que no Brasil ainda engatinham.
O Futuro, abrindo perspectivas profissionais, cumprindo
um papel social obrigatório a uma entidade cultural comprometida com este país,
suas carências, seu desenvolvimento.
Os ambientes de trabalho deste Museu Escola terão sua
visão devassada aos visitantes das mostras, que poderão observar seus
bastidores palpitantes, conforme o projeto que vocês podem conhecer acessando
nosso site.
Por fim, aproveito a importância do momento para
desanuviar outra questão: nós, da família Angel, respeitamos as Forças Armadas
brasileiras. Temos bons amigos nelas. Zuzu Angel, no turbilhão de seu
desespero, foi alvo de gestos solidários de senhoras de generais, que a
procuraram compadecidas, bem como viu o comandante do I Exército, general
Sylvio Frota, abrir-lhe a própria casa durante o jantar em família, para tentar
confortar-lhe em seu desespero.
No governo da Abertura, do general Figueiredo, ouvi
textualmente de um ministro militar sua inconformidade com os “excessos” que
haviam sido praticados nas prisões contra os oposicionistas, com os quais ele
não concordava.
Hoje, ouvimos vozes saudosas dos ruídos da ditadura.
Porém, os únicos sons de que de fato o Brasil carece são os trinados cantados
por Gonçalves Dias, que acalentaram nossas infâncias: Minha terra tem
palmeiras onde cantam os sabiás…
As aves que aqui gorjeiam… neste meu vestido,
com estampa de Zuzu, gorjeiam em nossos corações, vistam eles fardas ou roupas
civis, tenham cabelos lisos ou afro, gostem de samba, funk ou rock.
Gorjeiem, passarinhos, em nossa esperança de
vida sempre harmoniosa para todos os brasileiros, e vamos agora juntos
escutá-los cantar nos panos desta Ocupação
Zuzu!
Muito obrigada
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