quarta-feira, 9 de setembro de 2020

 

Jerusalém, a Sagrada

 

Era para ser apenas mais um servico

provisório.Transformou-se em experiência iniciática.

 

No lusco-fusco da madrugada, lá pelas quatro da manhã, toda manhã, meu sono era docemente embalado pela belíssima litania das sinagogas; às cinco, do alto de suas mesquitas vinha me ninar, em árabe, a voz rouca e profunda dos muezins; às seis, o belamente monótono badalar dos sinos das catedrais me interrompia o sono, fazendo-me levantar. Por dois meses começava assim minha rotina diária.

Em Jerusalém as orações se repetem contínua e ritmicamente, dia e noite, ciclo interminável de vibrações que envolve a cidade, gerando como que uma concha invisível que a separa do tempo e lhe cria espaço especial, próprio, único, mágico. Nele eu me movia, e percebia o movimento dos demais, como em "slow motion". A rotina da vida era cumprida sim - acordar, trabalhar, me alimentar, ler, ouvir notícias, execrar opressores, simpatizar com oprimidos, entristecer-me com tragédias, rir, chorar, indignar-me com a violência, sentir saudade, medo e dor; mas era tudo atemporal, vivido em “off”; como se nada fosse muito importante, como se houvesse uma outra realidade, maior, paralela e imaterial, impondo-se a ser considerada.

Acredito que naquela cidade de emanações tão especiais, naquele ambiente onde tantas impressões se lançavam sobre mim com ímpeto de torrente, uma parte de meu ser raramente percebida no mundo pragmático em que vivemos - porque enfraquecida de viver à míngua de sentimentos, tenha criado forças, se afirmado, fazendo-se  presente e assim ampliando os limites do meu ser que passou a perceber mais, sentir mais, pensar e compreender mais, e mais rapidamente:

·    em meio àquela paisagem onde a vegetação rara e rala guerreia com o chão de pedras, esgueirando astuciosas e decididas raízes pelas brechas da rocha para se manter viva e crescer, pude entender melhor o caráter dos povos que lá nasceram e há mais de cinco mil anos ali continuam a viver, guerreando pela  terra que cada um entende como sua;

·    no súbito e aveludado verdor da relva, que após um único dia de chuva atapetou o pedregoso chão que parecia morto, pude compreender como surgiu no homem o mito da ressurreição, que pontilha tantas e tantas crenças;

·    no deserto que se espraia até onde a vista alcança, em sua aridez e na enormidade das dunas cuja escala esmaga o ser humano e nos faz sentir minúsculos e impotentes, revelou-se-me em um insight a razão da necessidade humana em criar um ser supremo, que nos proteja e acompanhe, que nos dê forças para lutar contra a sanha dos muito mais poderosos elementos naturais; foi certamente assim, e sem sombra de dúvidas ali, que nasceu a idéia do deus Protetor, Pastor, Guia, Pai e Salvador.

Durou apenas dois meses minha estada. Por dois meses meus olhos se apropriaram de uma paisagem única, forte, encantada, que me invadia com força e me tomava com intensidade: belíssimos pores-de-sol pintando em rosa e dourado o alongado perfil da cidade recortado por torres de igrejas e domos de mesquitas e sinagogas; a brutal e sinuosa sinfonia das dunas do deserto, que me aterrorizavam pela imensidão; o mistério aquoso e impenetrável do Jordão e do Mar Morto, testemunhas líquidas e impassíveis de tantos séculos de História; as plantações de tâmara manchando com um verde esfuziante pedaços da aridez amarelada e desesperante do deserto que as rodeia. Ali tudo é intenso. Tudo lembra luta, garra, decisão. É uma terra de fortes, porque nela fracos não sobrevivem.

Durou apenas dois meses minha estada, mas de tal forma essa terra se entranhou em mim que, de longe, escuto forte e incessante seu chamado, mítica sereia do deserto. Quero voltar. Vou voltar. Vou voltar continuamente, não como turista: como peregrina; nao de uma religião, mas da religiosidade. Vou voltar para alimentar a alma, para reforçar  em mim tudo que não é matéria e que ali encontra o alimento etéreo continuamente negado no dia a dia do mundo comum em que vivemos.  Vou voltar para deixar meu espírito se encantar ao ler, sob a forma atual de placas de ruas ou indicadores de estradas, nomes embutidos em minha memória coletiva de ocidental - Galiléia, Nazaré, Belém, Jericó, Mar Morto e tantos outros - que me remetem às aulas de catecismo na infância, às de urbanismo na faculdade de arquitetura e, bem mais tarde, aos estudos da bíblia e de outros livros sagrados, nessa minha vontade febril de entender como e porquê o Homem criou Deus.

Vou voltar para simplismente me sentar em um café em frente à porta de Damasco e admirar a força das muralhas - tantas vezes construídas por habitantes aguerridos e tantas outras demolidas por guerras que fizeram a História,  enquanto em meu interior desfilarão, como em um filme, nomes dos grandes heróis ou vilões que alí viveram ou que por lá passaram – Heródes, Constantino, Nuheredin, Salaadin, Napoleão, Davi, Maomé, Jesus, assim estendendo-me a existência para além dos limites de minha vida comum, e me fazendo sentir atora deste belíssimo desfile que é a Marcha da Humanidade. Vou voltar para visitar, mais uma vez, todos os seus incontáveis templos. Voltar para me deixar ficar, simplismente me deixar ficar, perambulando por suas ruelas, admirando seu pefil urbano espraiado na paisagem árida, permitindo que meu espírito se embeba de magia e assente raízes nesse longíquo passado que moldou a civilização ocidental e que, alí, continua presente, vibrante e palpável.

Até muito breve Jerusalém, a Sagrada.

Rose Marie Romariz Maasri

   Jerusalém,  Palestina, 2012

 

[1] Oficial de Chancelaria, aposentada, do Ministério das Relações Exteriores,  Bacharel em Arquitetura e Urbanismo, Licenciada em Desenho e Artes Plásticas, com Especialização no Desenvolvimento da Criatividade Infantil e Mestranda em Arte Sacra Oriental.  

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