PARASITA, SENHOR MINISTRO?
Apresento-me: sou Oficial de Chancelaria, uma das duas carreiras de nível superior, típicas de Estado, que compõem o quadro do Ministério das Relações Exteriores. Aposentei-me há pouco mais de três anos, após servir ao Ministério por mais de 45. Tenho Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo, Licenciatura em Desenho e Artes Plásticas -ambos pela Universidadede Brasília – UnB, e estou em fase de conclusão de uma tese de Mestrado em Arte Sacra Oriental, em conceituada Universidade libanesa. Ensinei em algumas Universidades brasileiras e, concluída a tese, pretendo voltar a ensinar. Falo bem três idiomas, dois outros razoavelmente. Este texto tem um pouco de minha estória. Espero que outros colegas lhe façam conhecer a deles. Quem sabe, conhecendo as funções que desempenhamos e os riscos que corremos, tente entender que NÃO SOMOS PARASITAS.
Dos muitos anos de carreira vivi 28 no exterior, em Missões provisórias ou permanentes: Finlândia, Grécia, Itália, Reino Unido, França, Alemanha, Estados Unidos, Argentina, Chile, Líbano, Síria, Líbia, Moçambique. Como a grande maioria de meus colegas, no trabalho fiz um pouco de tudo: Administração, Pessoal, Contabilidade, Comercial, Comunicações, Consular, Cultural. Em todos os setores aprendi e me desdobrei para desenvolver um bom trabalho, mas o Consular e o Cultural foram os que mais me marcaram. Enquanto Vice-Cônsul visitei prisões e hospitais, atendi mulheres e crianças abusadas, raptadas, maltratadas, abandonadas; pessoas enganadas por falsos contratos de trabalho; enfrentei - pagando caro por isso, o submundo dos documentos brasileiros falsificados; e muitas vezes chorei por não poder fazer mais por quem necessitava. PARASITA, SENHOR MINISTRO ?
No setor Cultural esforcei-me por divulgar a imagem do Brasil, ministrando aulas e conferências em escolas e Universidades dos países onde atuei, além do trabalho desenvolvido na Embaixada. Participei da equipe que organizou e fundou o Centro Cultural Brasil-Líbano e fui sua Diretora. Em alguns dos Postos em que servi usei meus conhecimentos de arquiteta para propor reformas ou novos lay-outs dos escritórios. Por haver trabalhado diretamente com o Arquiteto Olavo Redig de Campos, e conhecer bem seu projeto para a residência do Brasil no Líbano, propus ao então Chefe do Serviço Cultural da Embaixada em Beirute a inclusão, no Programa Cultural do Posto, de uma publicação sobre a Residência, enquanto Próprio Nacional. O projeto não apenas foi aceito pelo Itamaraty como,ampliado, deu vida a uma coleção que abrange todos os próprios nacionais do MRE. A administração da preparação do livro sobre a Residência em Beirute ficou sob minha responsabilidade. O texto do livro que explica o projeto, embora não leve meu nome, foi escrito por mim. PARASITA, SENHOR MINISTRO ?
Servi em país em guerra. Manter a Embaixada funcionando era uma desafio diário. Meus colegas e eu íamos para o trabalho com o rádio do carro ligado, buscando caminhos fora dos locais onde, naquele dia, caiam as bombas. Por vezes dormia-se na própria Embaixada, porque as estradas náo apresentavam condiçóes de segurança. Certa vez passamos um dia e uma noite no porão do prédio, ouvindo os bombardeios incessantes e inalando os vapores que saíamdos aquecedores a querosene com quem dividíamos o espaço. Tarde da noite um cessar fogo foi estabelecido e pude voltar para casa, onde estavam minhas filhas com a empregada. As ruas desertas tornaram a viagem curta. Ao entrar no prédio em que morava as bombas voltaram a cair. Passamos a noite no hall de entrada, local mais protegido. Sentadas no cháo, as crianças dormiram com a cabeça em minha perna. Eu náo pude dormir, pensando no marido que náo havia conseguido deixar o local de trabalho, e com o sentimento ilógico de que, enquanto mantivesse os olhos abertos, protegeria melhor minha família. Pela manhã,novo cessar-fogo. Ao me arrumar para voltar ao trabalho senti as primeiras dores do aborto que interrompeu minha gravidez de quatro meses. Nao foi a única. Dois anos mais tarde, grávida de seis meses e meio decidi viajar ao Brasilpara que o bebê nascesse em paz, porque a guerra continuava a devastar o país em que eu servia. Segui para o aeroporto com as duas crianças. Iamos no Banco de trás, elas deitadas com as cabecas no meu colo, eu curvada sobre elas, escondendo-as dos franco-atiradores que ficavam nas ruas onde deveriamos passar. As três sobrevivemos; a bebê não: após a chegada ao Brasil comecei a sentir contrações. Levada às pressas para o hospittal, ocorreu o parto prematuro. Irina não conseguiu sobreviver: deixou-nos poucas horas depois que nasceu. Um dos momentos mais tristes de minha vida, gerou uma depressáo que levou muitotempo para ser curada. Se é que o foi... PARASITA, SENHOR MINISTRO ?
Em 2012 eu servia na Embaixada em Damasco. A carreira aque pertenço decidiu iniciar uma greve por reinvindicaçoes trabalhistas. Embora concordasse e apoiasse cada uma das reinvindicações, não aderi fisicamente à paralisação. E não o fiz porque o Posto em que estava lotada, diariamente confrontado com as sequelas da guerra na Síria, vivia em constante prontidão. Não foi decisão fácil e espero que os colegas a tenham entendido. É que, para mim, interesses pessoais - mesmo os da classe a que pertencemos, não podem se sobrepor ao daqueles que, vivendo em situaçõesde emergência, necessitem da assistência que os funcionários públicos do Posto, como eu e os colegas lhes podem proporcionar. Isto é, para mim, consciência profissional. PARASITA, SENHOR MINISTRO?
Quando entrei no Itamaraty o salário de um Ofchan aposentado equivalia ao de um Conselheiro da Carreira de Diplomata. Com o tempo essa relação foi-se deteriorando e hoje meu salário é menor do que o de um Terceiro Secretario em início de Carreira. Obviamente não gosto disso. É injusto. Mas em nenhum momento deixei que tal injustiça prejudicasse o nível de trabalho que me propus a realizar. PARASITA, SENHOR MINISTRO ?
De uma autoridade de seu calibre, que se propõe a resgataro Brasil do caos, espera-se um conhecimento detalhado do tecido administrativo do país. Sua afirmação, desqualificando-nos, demonstra não ser este o caso. O senhor pode ser um excelente economista – e o é; mas acaba de demonstrar que não entende nada de pessoas. Quer encontrar PARASITAS dos recursos brasileiros? Porque eles existem e são inúmeros. Olhe na direçao certa: volte-se para os altos escalões dos 3 Poderes da República; para aqueles que recebem salários de marajás, complementados por seguro creche, educação e outros; veículo oficial com motorista, auxílio moradia, reformas principescas dos apartamentos funcionais; e uma miríade de possibilidades de exploração da máquina pública, como o uso de aviões da FAB para deslocamentos pessoais. É contra esses, senhor Ministro, que o senhor deve voltar sua artilharia. Nós, os funcionários públicos, ofendidos por sua declaração, esperamos desculpas. Porque, entenda: NÃO SOMOS PARASITAS, SENHOR MINISTRO.
Rose Marie Romariz Maasri
Oficial de Chancelaria, aposentada
SIAPE 04614011
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