Por Nilson Paixão / Correio Braziliense - 08/08/2012
Ainda no final do século 19, o filósofo alemão Arthur Schopenhauer já divisava, com concisão e brilhantismo, os três estágios da verdade. Num primeiro momento, formulou Schopenhauer, surge a ridicularização. Em seguida, ela passa a ser combatida, violentamente antagonizada, com som e fúria. Por fim, como que em um passe de mágica, os fatos primeiramente ridicularizados, e, em seguida, fortemente combatidos, se transmutam em verdade autoevidente. É esse caminho sinuoso, mas esclarecedor, que vem trilhando o debate sobre a divulgação nominal dos salários dos servidores públicos, com base na Lei de Acesso à Informação que entrou em vigor em maio passado com o saudável objetivo de tornar mais transparentes as atividades do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Comecemos pela tentativa de ridicularização. Ela apareceu assim que o Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo Federal e do Tribunal de Contas da União (Sindilegis) levantou a tese de que a divulgação dos salários dos servidores públicos com identificação nominal era uma afronta à Constituição Federal. Casta privilegiada, marajás e defensores do obscurantismo foram alguns dos adjetivos utilizados para tentar manchar a imagem dos servidores públicos contrários à aplicação equivocada de uma lei que, na sua essência, é inequívoco avanço institucional para o país. Não se debateu a ideia em si. Não se questionou o argumento. Tratou-se, apenas, de atacar o mensageiro. Eis que, então, surgiu a fase do combate, da antagonização barulhenta, que, afinal, é a essência da democracia. Para combater a tese de que é preciso preservar a identidade dos servidores, divulgando suas remunerações por função ou algum outro código, surgiu a teoria de que servidor público, por ser pago com dinheiro público, não tem direito à vida privada. Muita gente bem-intencionada, como o ministro Jorge Hage, da Controladoria-Geral da União (CGU), embarcou nessa canoa furada. “Não há restrições quanto à divulgação do nome completo, da remuneração total. O decreto é bastante explícito em relação a isso”, afirmou o ministro, após cerimônia de abertura da 1ª Conferência Nacional de Transparência e Controle Social, realizada em Brasília. “Quem não se conforma, vai reclamar no Judiciário”. Dito e feito. Coube ao Poder Judiciário reparar, ainda que em caráter liminar, interpretações abusivas e flagrantemente inconstitucionais da Lei de Acesso à Informação. Há juízes no Brasil! Duas decisões da Justiça federal, provocadas por ações do Sindilegis, reconheceram que a exposição nominal viola garantias constitucionais importantes, como o direito à inviolabilidade da intimidade, da honra e da vida privada das pessoas. São ainda decisões liminares, que podem ser reformadas, mas jogam alguma luz em um debate que parecia interditado poucos dias atrás. Essas decisões impedem o Congresso Nacional de divulgar os salários dos servidores de maneira nominal. Em vez da exposição injustificada, do big brother espetaculoso e ilegal, a remuneração dos servidores já está disponível, de maneira individualizada, com um código para cada servidor. E o que tudo isso significa? Significa que, para a sociedade, que paga altos impostos e sustenta a máquina pública, é fundamental conhecer em detalhes como, quando e onde é gasto o seu suado dinheiro. Mas também significa que, até aqui, o entendimento da Justiça é o de que servidor público é um cidadão como qualquer outro, nem mais, nem menos. E, como todos os cidadãos, tem direito, sim, à vida privada. A divulgação dos vencimentos por meio de um código referencial, portanto, cumpre com o objetivo de informar à sociedade a exata destinação de seus impostos sem constranger nem violar direitos fundamentais dos servidores públicos. Direitos esses que não são patrimônio individual de uma categoria profissional. São direitos de todos. São direitos universais consagrados pela ordem democrática nacional. Solapados, esses direitos precisaram ser defendidos, no âmbito do Poder Judiciário, pela categoria que eu represento. Mas essa briga não deveria ser apenas nossa. Daqui a algum tempo, lembrando Schopenhauer, ficará claro como o sol que a defesa de direitos fundamentais é uma questão de interesse de todos os brasileiros, sem o que não se pode falar em Estado Democrático de Direito.
Nilson Paixão é presidente do Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo e do Tribunal de Contas da União (Sindilegis)
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